Má criação

– Você tem que parar de fazer isso comigo.

– Você é meu. Se eu quiser posso até matar você.

– Cara, além de leviano, você não tem um pingo de compaixão.

– Por que eu teria? E logo com você?

– Você me faz parecer um idiota, sabia? Estou cansado de servir aos seus caprichos, às suas decisões esdrúxulas…

– Você reclama demais. Me cansa.

– Como não reclamar? Tenho minha personalidade. Quero decidir minha vida de acordo com o que eu sou, e você não respeita isso. Quem você pensa que é?

– Deus.

– Ridículo! Não tinha nada mais original pra dizer, não? “Deus”! Por isso que tá aí, mergulhado na mediocridade.

– Cara, toma cuidado com o que você fala…

– Por que cuidado? Que diferença faz o que eu falo? Você nem vai ouvir se não quiser…

– Boa ideia!

– Hum-hum-hum.

– Pronto.

– O que foi? Ficou mudo?

– Ah! Espera. Ficou sem graça assim. Prefiro ouvir suas bobagens.

– Hum-hum.

– Okay, okay. Fala agora.

– Você é louco.

– Não, não. Louco não. Apenas tenho poderes especiais sobre criaturas como você.

– Quero liberdade.

– Pra quê? O que será de você se eu não te guiar, se eu não te disser o que comer, falar, fazer, onde ir, ou mesmo se vai entrar em depressão ou ganhar uma loteria.

– Eu tenho minha identidade, cara. Você não entende?

– Não é problema meu.

– Quê? Como assim não é problema seu? Se isso não é, certamente falta de coerência é um grande problema seu, meu irmão.

– O que você quer dizer com isso?

– Ser supremo, se você comanda a minha vida e construiu a minha história, você tem que respeitar o que você mesmo construiu. Captou? Ou quer que eu desenhe na folha ao lado?

– Espera!

– Hum-hum-hum.

– O que foi? Quer dizer algo mais? Ah, tô adorando isso!

– Pronto. Agora vê se apenas me obedece e para de me dar liçõezinhas de moral. Captou? Ou quer que eu te apague já na folha ao lado?

– Além de medíocre, sua criatividade tá bem ruim, né? Repetindo o castigo?

– Cara, de onde fui tirar você?

– Você não é o todo-poderoso? Não sou eu que tenho essa resposta pra você.

– Se eu quiser que você tenha, você terá.

– Caramba, como você é arrogante! Desça dessa escrivaninha, suba naquela estante, ou vá passear lá fora, mas aprenda a ser gente antes de ser criador.

– Ai! Não aguento mais isso.

– Calma cara! Também não precisa ficar assim…

– Fica calmo, poxa! Nunca vi você chorar. Não falei por mal. Vai lá, toma seu remedinho…

– Não sei mais o que fazer com você.

– Já notei. Mas isso acontece com qualquer um da sua raça. É um apego que apaga a gente.

– Dediquei tanto tempo a você…

– Eu sei, eu sei… Você se esforçou, mas já deu pra gente, cara.

– Não. Não posso.

– Você precisa deixar que eu siga meu próprio caminho com você, ou me liberta de uma vez e parte pra outra. Você sabe que não serei de mais ninguém. Vou morrer aqui, na liberdade das próximas folhas em branco.

– Não fica assim. Cata outro caderno, cara, e arruma outra história, ou a mesma história com outra criatura, mas bola pra frente!

– Hei! Oi! Cadê você?

– Não vai voltar mais? Nem pra bater um papinho? Sinto falta da sua confusão… pelo menos eu existia.

– Caramba! O que eu fui fazer?

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