Tempos
confusos esses em que os humanos habitam o planeta. Confusos humanos perdidos
em sua existência inconsciente e inconsequente sobre um esférico presente.
Não,
Fulano, esse presente não está embalado. Pare de rasgar e destruir o que você considera
embalagem, ou laços e fitas sem importância. Você não encontrará nada que valha
tantas penas abaixo disso. Os detalhes colocados na superfície do presente não
são apenas enfeites, e não são descartáveis. São elementos que o integram e
sustentam sua vida, e deles fazem parte os outros mais de sete bilhões de
detalhes humanos como você.
Talvez você não saiba, mas, sempre que uma vida, humana ou não, é desrespeitada, desvalorizada, rasgada e jogada no lixo, o presente torna-se menos presente na sua vida equivocada. Há menos presente e mais passado a cada pedaço de planeta rasgado, e sua vida está no presente… neste presente.
Fonte da imagem: página Hora da Ciência (Facebook)
Seu maior engano, Beltrano?
Você
tenta arrancar a quota do presente que não lhe pertence da mão do outro a
qualquer custo. Na sua mente egocêntrica, você acredita ser algo mais do que é
qualquer outro humano a quem foi precariamente entregue esse presente, e
furta-se às regras básicas de uso de tudo que pertence a todos: ética, empatia,
respeito e responsabilidade.
Veja como seu espírito é ilógico e ignorante: você acredita que a embalagem do esférico presente não tem valor, mas a embalagem da sua espécie tem. Acredita que a cor e a forma da sua própria casca, ou o invólucro que ela utiliza para usufruir o presente, são mais importantes que o seu conteúdo, ou que determinam algum tipo de padrão de qualidade superior.
Imbecil
que é, você viola, mata e destrói cada pedaço do presente ao seu alcance, a fim
de dominá-lo. Mas se você não acordar, sabe qual será seu futuro, Sicrano? Será
o de uma embalagem vazia e descartável dominando um pedaço de esfera arruinado,
e apenas pelo tempo que sua breve vida ou o resultado da sua ignorância
permitirem.
Sendo espectadora de
certas notícias e fatos, é inevitável a pergunta: “O que motivaria algumas
atitudes selvagens e ignorantes de alguns exemplares da espécie humana?”
Pensei numa hipótese,
aparentemente, plausível: Quando os biólogos procederam à nossa classificação
taxonômica, detiveram-se no “homo sapiens sapiens”. Optaram por não identificar
outras subespécies, por uma questão, talvez, de vaidade perante à natureza, uma
vez que faziam parte do objeto classificado. E essa vaidade ainda os motivou a
repetir o termo “sapiens” para essa única subespécie reconhecida
atualmente.
Mas há, claramente, outras subespécies entre os que chamamos de humanos. Duas evidenciam-se entre elas: “homo barbaris” e “homo imbecilis”.
A primeira é composta por
predadores bárbaros (e imbecis), não talhados para o convívio social.
A segunda compõe-se de
seres sem um mínimo de juízo de valor, capacidade crítica, atenção ou empatia –
ainda quadrúpedes no espírito!
Os bárbaros e imbecis
escondem-se entre as demais subespécies humanas, devido à sua aparência. Isso
porque, no revestimento da espécie “homo sapiens”, ainda que haja pequenos
detalhes distintos – provenientes da etnia, do sexo ou da idade, por exemplo –
eles são, de fato, irrelevantes para considerar-se ou não um espécime como um
ser humano. Ainda assim, esses e outros invólucros de consideração relativa tem
um valor absoluto para muitos integrantes dessa espécie, de um modo um tanto
negativo. Não se chegou a um nível evolutivo comum, em que todas as almas
humanas são capazes de enxergar e reconhecer outras almas humanas.
Acredita-se apenas no que
os olhos da matéria veem, até onde alcançam, e no que os ouvidos da matéria
ouvem, muitas vezes, de bocas malditas.
Benditos os macacos sábios, que poucos “sapiens” veem, ouvem ou deles falam e, menos ainda, entendem.
É possível, no entanto,
identificar bárbaros e imbecis, quando externam suas características
peculiares, por exemplo, apartando, desrespeitando ou agredindo negros ou
brancos, mulheres ou homens, jovens ou velhos, homos ou heteros, pobres ou
ricos, bonitos ou “feios”, crentes ou céticos, canhotos ou destros, “perfeitos”
ou imperfeitos, ou quaisquer outros grupos humanos identificados ou inventados,
devido a suas opções, opiniões, histórias, culturas ou características
superficiais diferentes.
Esse atraso na evolução,
inerente ao “homo barbaris” e ao “homo imbecilis”, deve-se a um desenvolvimento
insuficiente do cérebro racional, e esse fato afeta a sua capacidade (ou
necessidade) de julgamento. Sentem-se ameaçados diante daquilo que não
compreendem ou daquilo que é diferente do que veem no espelho. Com um cérebro
míope, aos bárbaros e imbecis não é fácil distinguir uma ameaça real de uma
imaginária, ou mesmo posicionar-se com interesse saudável e respeitoso pelo que
é “diferente”. Limitados por uma mente pouco desenvolvida e delirante, na
ilusão de haver um ideal de aparência, opinião ou vida, aplicável a todos, não
são capazes de perceber o quanto poderiam desenvolver sua mente tacanha,
aprendendo sobre o mundo que os cerca e sobre si mesmos com o diferente, ou o
novo. A covardia ou o medo perante o desconhecido trava sua razão, deixando
palavras e atos ao governo de impulsos primitivos e, hoje, um tanto descabidos.
A incapacidade racional faz com que fujam ou ataquem aquilo com que não se
identificam.
Os bárbaros e imbecis
podem também ser comparados a alguns animais, de outras classificações
taxonômicas, que se utilizam dos mecanismos de defesa antipredação. Liberam
espinhos, substâncias gosmentas ou líquidos venenosos, mimetizam-se, ou
utilizam ataques de resistência, porém, agem assim, ou até de modo mais
drástico, diante de predadores imaginários.
Quando observamos as
ações e as palavras dessas subespécies, uma primeira reação é a indignação ou a
revolta, naturalmente. Mas, sob o domínio da razão, é possível notar como seus
espécimes são dignos de pena, pois são limitados demais para perceber coisas
elementares, como a leveza da simples aceitação do outro como é, ou deseja ser.
São pobres espíritos incapazes de gozar do poder e da alegria de observar a
diversidade sem, por ela, sentirem-se ameaçados.
filme 2001 – Uma odisséia no espaço
É certo que cada um de
nós, humanos, guarda em si doses de irracionalidade, egocentrismo e
preconceitos, mas a diferença está na capacidade ou não de colocar tudo isso
sob o domínio do bom senso e da consciência, no uso ou não da empatia, enfim,
na qualidade do filtro de sensatez, utilizado ao longo da nossa breve
existência nesse mundo, filtro esse, deficiente ou inexistente nas subespécies
em questão.
De fato, eu gostaria de
acreditar que toda essa “teoria” é uma grande bobagem, e que as barbaridades e
imbecilidades praticadas por alguns “homo sapiens” são exceções, e que a regra
é a racionalidade – que talvez sejam atos de mentes racionais, porém deturpadas
por traumatismos, péssima educação ou deficiência química no cérebro e que, por
apresentarem-se em número reduzido, podem ser controladas. Mas as vemos em
excesso, executadas inclusive por bárbaros e imbecis com poder político,
ocupando posições que lhes facultam lesar e destruir a nossa e outras espécies,
tanto perpetuando a miséria e a ignorância, quanto com autoridade para conduzir
nosso mundo a guerras irracionais e catastróficas. Diante desses e de todos os
absurdos a que assistimos diariamente, é realmente difícil acreditar que somos
todos de uma mesma subespécie “sapiens”.
Existem várias “big
pictures” existenciais – espiritual, política, social, cultural, entre outras.
A certa altura da vida, ciente disso ou não, um ser racional, para ser
reconhecido pelos pares como tal, precisa escolher um determinado ponto em cada
quadro existencial para ali se alojar, tornando-se, muitas vezes, um elemento
fixo da imagem.
Desse ponto que lhe
oferece uma cômoda e paralisada segurança, avista apenas o que os olhos
alcançam e, sem experimentar o pixel alheio, sobre ele adota conclusões. Forma
convicções a partir de uma imagem em baixa resolução, sem qualquer esforço num
sentido HD – talvez por medo da alta e, por vezes, dolorosa definição. Há uma
fé inabalável no ponto de vista adotado, em muitos aspectos, contado por um
“telefone sem fio” presente na História.
Por que estou dizendo
isso? Porque quando caio em determinados pixels, depois de me debater dentro
deles, tento escapar e me torno uma espécie de andarilha sobre tinta fresca.
Não consigo estacionar, achar vaga num exato lugar, onde caiba o tamanho da
confusão que é a minha certeza, e onde se encaixe a incerteza que é a minha
verdade.
Admiro a satisfação e
a tranquilidade que vejo no fundo do olhar dos que acreditam – não, não faltou
o objeto indireto – é que esse “acreditar” é um tanto intransitivo, devido aos
incontáveis e robustos complementos confusos, que não conseguem transitar pelo
túnel estreito da minha mente descrente.
Não sei tirar uma
conclusão absoluta sobre algo que observo à distância, por meio dos meus parcos
sentidos humanos, ou porque me disseram ou, ainda, para me sentir segura e
apoiada pelos habitantes de um único e apertado pixel. Evito propalar qualquer
ponto de vista não experimentado, por pura consciência da minha ignorância
sobre o grande quadro. Minha humanidade simplesmente não me deixa alcançar a
altura necessária sobre a tela, para enxergá-la por inteiro e em alta
definição.
Fragmentos de realidades me inquietam. Troca de adjetivos nos debates entre habitantes de diferentes pixels me irritam.
Em discussões, as
efusivas manifestações de apreço ou desapreço, em regra, denotam uma
incapacidade de argumentação na defesa inócua de um único ponto de vista. Mas
há quem entenda que a não adoção incondicional de um pixel, um grupo, um time,
um clube, um partido, uma religião, uma verdade absoluta é atitude de pessoas
alienadas, sem senso crítico ou opinião… e lá vem um arsenal de pedras
lançadas de todos os lados, por egos inflados e sem imaginação.
Há um fenômeno um
tanto interessante, para não dizer angustiante, sobre isso. No que diz respeito
especialmente à política, observa-se uma típica anexação entre habitantes de
pixels distintos, provenientes de outros quadros existenciais, que se
reorganizam em apenas dois blocos, ou lados, pintando uma tela um tanto
monótona e, por vezes, tosca. Para muitos, o lado escolhido deve ser vitalício,
e qualquer membro do bloco “oposto” deve ser considerado seu arqui-inimigo.
Esses seres maniqueístas, autoclassificados como racionais e conscientes, desconsideram
que ambos os lados são preenchidos por seres humanos individualmente bons e
maus, ignorantes e sabedores, cheios de dualidades, mutáveis e perecíveis.
Sim, lados existem, mas definir-se a si mesmo, de modo peremptório e superior, como um pixel, ou um lado, pode provocar um defeito no pensamento racional,
que acaba descontextualizando fatos e ideias, colocando-os nesse ou naquele polo, estancados da sua realidade complexa e integral. Pensamentos e fatos passam a ser resultados da visão viciada: “O que vem do meu lado está certo e o que vem do seu lado está errado. Ponto final” – uma simplicidade cômoda e conveniente ao ego.
Vemos e vivemos,
diariamente, as consequências de escolherem-se pixels como verdades absolutas,
ou como se fossem a paisagem inteira. Adotar ferrenhamente um ponto de vista,
sem o conhecimento ou a simples aceitação de outros pontos de vista, suscita
opiniões, conclusões e decisões tendenciosas, passionais e até mesmo
extremistas, gerando consequências desastrosas na evolução de uma sociedade.
Tentar dialogar com
“mentes pixels” é um dispêndio de energia estéril e entediante e, às vezes, até
deprimente. Não há debates produtivos e evolutivos, mas comportamentos
infantis, irracionais e beligerantes. Basta observar grande parte das
discussões em redes sociais, onde se nota que as partes em conflito abrem o
filtro afetivo apenas para fatos e opiniões que sedimentam a própria convicção,
e anestesiam os neurônios frente àqueles que a contrariam.
Photo by Jhonis Martins from Pexels
Isso acontece por
vários motivos, entre eles: preguiça de escalar muros, aqueles mais altos,
normalmente censurados, que separam pixels e blocos e possibilitam uma
observação mais ampla de uma perspectiva menos egoica; preguiça de ir à caça de
informações objetivas e contextualizadas de fontes imparciais, com o fim de
construir uma opinião própria; insegurança e medo de ser banido ou criticado
pelos habitantes do pixel escolhido, perdendo sua proteção; necessidade de ser
aceito, seguido e aplaudido pelo grupo; medo de desabar, ao ter que se desfazer
de algum fundamento ou valor de vida, sobre o qual sua estrutura pessoal foi
construída.
Obviamente, o
presente texto pode ser, ele mesmo, mais um ponto de vista, ou até mesmo uma
mancha surrealista, resultado de vários pixels embaralhados. O fato é que essa
“mancha” me traduz e não me deixa habitar, impassível, categorias e grupos, ou
pontos, sejam pontos de vista radicais ou pontos finais assertivos demais.
Recuso grupos dogmáticos, que impõem crenças ou pregam o desrespeito ou a
absoluta ausência delas, sem margem a questionamentos, destruindo a capacidade
dos seus integrantes de desenvolverem, mudarem, aperfeiçoarem ou mesmo
abandonarem ideias preconcebidas. Esquivo-me o quanto posso, mas sei que é
impossível não pertencer a nenhum grupo e, ao mesmo tempo, viver em sociedade.
Ainda assim, procuro manter a consciência de que grupos, classes e categorias
não me definem, para oferecer a mim mesma outras perspectivas.
Surreal olho paisagem – pixabay
Por tudo isso, ao
interagir com o outro, tenho o hábito temerário de não observar se ele está
inserido em algum grupo ou qual grupo é esse. Sei que essa atitude pode trazer
consequências embaraçosas, porém, a mancha surrealista me faz ver os outros
assim: puramente indivíduos além de mim.
Somos todos
seres humanos singulares unidos pela vida, agrupados aqui e ali, devido à
interdependência inata à nossa espécie – pois, entre outros fatores, grupos organizados
e conscientes são mais produtivos, prósperos e felizes do que
indivíduos isolados. Mas não podemos perder de vista o respeito à individualidade,
à diversidade e ao fato de que todos dividimos um único e colossal ponto de
vista em comum – a belíssima tela-esfera azul – esse, sim, um indeclinável e
valoroso ponto, ainda íntegro, girando no espaço.
Acredito que nada coloque mais medo no ser humano do que olhar para si
mesmo – aquele terror de ver um monstro atrás da porta, embaixo da cama, em
lugares escuros, escondidos, cheios de teias de aranha empoeiradas, ou sob
lençóis brancos jogados sobre a mobília encardida e abandonada.
Muitos preferem recuar, afastar-se desse quarto obscuro, antes mesmo de
abrir a porta. E alguns fogem e se enclausuram dentro de celas de telas
luminosas, que ofuscam a humanidade nelas escondida.
Outros trancam seus porões e entregam a chave (e o juízo) a seres superiores, os mais diversos, a depender de cada credo, fazendo deles faxineiros espirituais, responsáveis únicos pela sua limpeza e conservação.
E há os que saem de casa, à caça de vizinhos, para, de fora, olhar e
analisar a intimidade de seus lares, esquadrinhando mentalmente cômodos nunca
visitados, não percebendo que, de fato, o que seus olhos míopes enxergam são
espelhos.
Ora, claro! De onde mais sairiam os parâmetros para avaliar-se o que nunca se viu? No momento em que se julga aquilo que foi moldado e habita entre paredes alheias, utiliza-se como referência a própria arquitetura. Então me diga, são aposentos sórdidos e sombrios ou asseados e límpidos
os que você vê, lá fora de você?
A resposta é “nenhuma das anteriores”.
Entenda, meu caro, nada é puro e, mais, entenda também que porões
alheios não precisam ser julgados pelo seu olho caolho, especialmente, se você
desconhece seus próprios cantos sombrios.
Apenas dê meia volta e retorne para dentro de você e limpe, limpe, limpe
muito seu próprio porão. Retire os lençóis, as teias de aranha, abra as janelas
e permita que o ar novo entre. Aproveite a luz que lhe invade e cace seus
monstros, sejam eles Mogwais pentelhos ou mesmo uma Hidra de Lerna.
Essa odisseia é sua. Manter seus aposentos limpos e derrotar seus
monstros, ou, pelo menos, colocá-los sob controle, é tarefa árdua, contínua e
sua. E enquanto houver casa, haverá pó para espanar e monstros para enfrentar.
O inadmissível é a resignada ignorância de si mesmo. Isso é algo
nefasto, pois inibe a evolução espiritual, mantém a alma engatinhando e
acreditando, como um bebê, que apenas o que sê vê é o que existe.
Se eu não vejo meu monstro, ele não existe. E vou além. Para que ele não
apareça, inventarei e me ocuparei de monstros-amigos imaginários, que vivem em
casas alheias e me mantém, covardemente, distante dos meus próprios demônios.
Photo by Ray Harryhausen – Cyclop
Assim, meu Ciclope Siciliano cresce, toma conta do porão que nunca vejo, alimenta-se da sua invisibilidade e multiplica-se. E o quarto esquecido não é mais suficiente para abrigar a família de monstros que, então, começa a invadir os corredores e, aos poucos, o resto da casa, até sair pelo mundo e devorá-lo.