
O Globo: “Escrevo de dentro de Montese destruída. Montese já não existe. Nenhuma casa ficou intacta, e só agora podemos avaliar o efeito terrível causado pelos disparos da artilharia.
Montese é uma cidade deserta, envolta em ruínas. Em suas casas destroçadas, as manchas de sangue assinalam a violência da batalha com que os alemães a defenderam…” Egydio Squeff (16 de abril de 1945).
Quase dois anos após o Brasil declarar guerra à Alemanha Nazista e à Itália Fascista, em julho de 1944, o primeiro grupo da Força Expedicionária Brasileira foi enviado à Itália, para enfrentar os países do Eixo, ao lado dos Aliados. Não cabe aqui tratar dos motivos que levaram o Brasil a tomar parte ativa desse conflito mundial e, menos ainda, do fato de que o nosso país, em si mesmo, adotava um regime totalitário à época. De qualquer forma, argumenta-se que a gota d’agua para a entrada ativa das forças brasileiras em batalha foram os ataques que sacrificaram inúmeros navios mercantes brasileiros.
Então, no dizer da época, a cobra decidiu fumar.
Na primavera europeia de 1945, participei do grupo da 1ª Primeira Divisão de Infantaria Expedicionária Brasileira – 1ª DIE que, reforçada pelos tanques da 1ª Divisão Blindada Americana, foi enviada com a finalidade de resgatar a pequena Montese, encravada nas fronteiras das Províncias de Modena e de Bolonha, das mãos das tropas alemãs. Forças aliadas foram mobilizadas em uma importante ofensiva, destinada a eliminar forças nazistas. Capturar Montese abriria passagem aos Aliados para o Vale do Rio Pó, impedindo, assim, que os alemães implementassem o reforço do então denominado “Reduto Nacional”.

Meu Pelotão tomou parte da 2ª fase do planejado ataque com a invasão da cidade de Montese, no dia 14 de abril de 1945, por volta das 13h30. Em defesa, os alemães concentraram todo seu poder de fogo sobre a zona urbana, acreditando que a única força aliada estava concentrada ali, na cidade. Esse foi o grande erro dos inimigos, um erro que permitiu o avanço da 10ª Divisão de Infantaria de Montanha americana. Porém, a consequência nefasta disso foi que as forças da FEB e os civis viram-se sob intenso ataque de toda a artilharia alemã, provocando uma rápida e quase completa destruição da cidade.
No meio do caos e já no final daquela tarde sangrenta, acabei por me separar do meu pelotão, ao avistar um garoto de aproximadamente nove anos ajoelhado em frente a uma das várias residências destruídas. O garoto gritava curvado e com as mãos sobre o corpo de uma mulher.
A batalha continuava e ainda havia risco iminente à vida daquela criança. Não tive dúvidas de que deveria colocá-lo em local seguro. Eu me aproximei e, no momento em que coloquei minha mão sobre seus ombros, ele se virou e me agarrou o pescoço, repetindo em desespero:
– Mamma! Mamma!
A mulher esparramada no chão tinha parte do tórax lacerada. Não havia o que fazer, senão afastar a criança daquela cena pavorosa e do perigo que ainda corria. Peguei o menino no colo e corri para o meio de um amontoado de escombros. Um buraco no chão do que parecia ter sido uma residência, mostrava uma escada que levava até a uma espécie de porão. Desci com o menino em prantos, gritando pela mãe.
Abri a porta do sótão e falei para o menino permanecer ali. Prometi que voltaria para buscá-lo. Tomado pelo desespero, o menino agarrou-se a mim com uma força descomunal para seu tamanho. Não era possível desvencilhar-me dos seus braços de forma branda. Imaginei que passar alguns minutos ali, acalmando aquela criança, não traria prejuízos ao meu pelotão.
Sentei-me ao seu lado. Difícil dizer se ele tremia de frio ou do trauma. Coloquei meu braço esquerdo sobre seus ombros, acariciando sua cabeça e tentando acalmá-lo. Não pude evitar minhas lágrimas. Era como se aquele fosse o primeiro momento, desde meu desembarque naquele país, em que me dei conta do horror que era tudo aquilo. Eu me vi naquele menino. Lembrei-me da criança que fui, da minha infância tranquila em casa, ao lado do meu pai e da minha mãe. Senti uma empatia profundamente dolorosa. Experimentei o desespero de ver minha mãe daquela forma, caída no chão, em meio ao caos, dilacerada pela estupidez humana. Vivenciei o terror presente na alma daquela criança por não saber o que o aguardava, sem família, sem casa, sem cidade, sem qualquer esperança. Não pude abandonar aquela criança ali. Simplesmente, não pude. Passei a noite com ele, naquele sótão. Após algumas horas, ele adormeceu, e pretendi velar sua noite. Em algum momento também adormeci.
Despertei assustado com gritos em coro. O sol se infiltrava entre os entulhos daquele buraco. Imediatamente procurei o garoto, mas ele não estava ali. Levantei-me e olhei por todos os destroços acumulados naquele lugar. Nada. Meu relógio marcava 16h. Eu não entendia como tinha apagado por tanto tempo. “Onde estaria o garoto? O que havia acontecido, afinal?” – eu me torturava. Fui, então, invadido pelo remorso de ter abandonado meu pelotão.

Corri para fora e vi civis e militares escoltando grupos de alemães rendidos. Eu me sentia um desertor e um louco. “Onde estava o meu pelotão? O que teria acontecido com meus companheiros?”
Interrompi a marcha de um pracinha de outro pelotão, destacado para avançar logo após o meu grupo:
– Onde está meu Tenente? E meu pelotão?
– Você sobreviveu? – o pracinha me respondeu, como se visse um fantasma.
– O que você quer dizer?
– Seu pelotão foi dizimado ontem no final da tarde, sob um intenso ataque de morteiros vindo daquele morro ali – respondeu-me, apontando para o morro à nossa frente.
“Sou um covarde!” – gritei dentro de mim. Sob o pretexto de proteger uma criança, separei-me do meu pelotão e acabei sendo o único sobrevivente.
Não vi mais aquele garoto e me pergunto ainda se ele realmente existiu. Mas o fato é que sobrevivi por causa dele.
Cheguei a pensar se tudo não teria sido um efúgio do meu inconsciente. O menino que me afastou da morte seria eu mesmo, atemorizado e perdido? Uma criança desesperada que despertou dentro de um homem, em meio ao caos, clamando pela proteção de sua mãe? Acredito que nunca terei certezas sobre o garoto de Montese.
Alguns meses depois de declarado o final da guerra, decidi voltar para a Itália. Participei de um grupo de voluntários que ajudaram na reconstrução de Montese. Naquela temporada, acabei por conhecer algo que não havia sido aniquilado pelas batalhas – o vibrante coração daquele povo. Conheci também uma italiana em especial, com quem me casei e tive um filho.

Ele se tornou soldado do exército italiano. E cá estou, em meio a uma homenagem póstuma prestada a ele pela sua atuação em Nassíria, no sul do Iraque. Ele foi morto no conhecido atentado contra a base italiana, ocorrido em 12 de novembro de 2003.
Segundo relatórios do exército, poucos dias antes de sua morte, meu filho foi o principal responsável por impedir outro atentado prestes a ocorrer em uma escola daquela cidade. Sua brava atuação acabou por salvar mais de uma centena de crianças.
Montese foi mais uma experiência brutal e primitiva pela qual a humanidade passou, entre tantas outras. Pessoalmente, tive que lidar com a culpa pela minha sobrevivência, mas confesso que a velhice me trouxe perspectivas e uma quase convicção de que nada é por acaso. A minha sobrevivência teria possibilitado a salvação daquelas crianças em Nassíria? Qual o sentido de tudo isso? Quem deve morrer e quem deve sobreviver em uma guerra? Então as vidas dos meus companheiros pracinhas, mortos em 14 de abril de 1945, não teriam um sentido futuro como teve a minha? Não, não tenho convicção de nada. O que sei é que, antes de se tornar mais uma vítima da bestialidade humana, meu filho foi o herói que me devolveu a honra perdida na minha juventude.
fontes das imagens:
1. segundaguerra.net (Montese em ruínas – abril/1945)
2. folhamilitaronline.com.br (tomada de Montese – abril/1945)
3. segundaguerra.net (tomada de Montese – abril/1945)
4. tpi.it (ataque à base italiana em Nassíria – nov/2003)