A movimentada Avenida da Liberdade, em Braga, adotou-o sem cerimónias. Cerimónias para quê? Era apenas mais um, mais um cisco a evitar que entrasse pela vista adentro. Nunca se sabe, podia ser contagioso.

Como um pedaço de lixo, trazido pelo vento, ali aterrou e foi-se incrustando na paisagem urbana, junto ao “Café Vianna”.
Mendigar foi a única saída para um diagnóstico cruel – cegueira irreversível – ainda na adolescência. Um fardo para os pais enquanto viveram. Depois, entregue à própria sorte, experimentou a caridade de várias instituições. Afinal, “caridade” tinha uma definição estranha. Entre apalpadelas e tropeções, lançou-se num mundo mais negro do que a escuridão provocada pela cegueira. Por sorte, ou imposição das circunstâncias, abriu os olhos da mente.
No seu arquivo mental, ia alojando milhares de passos: passos de gente. Uns com pressa, outros nem por isso. Havia passos apaixonados e passos mal-amados. Passadas aventureiras e passinhos covardes… E nesse passadiço de transeuntes foi colecionando pegadas…
Bem cedo, de sapatilhas e perfume barato, chegava a que encenava o papel de mulher a dias, lá em casa. Com uma muda de roupa na mochila, despia a mulher a dias e virava a das mil e uma maravilhas. Pedia um café só para poder usar a casa de banho. Mais tarde, consoante a sorte, haveria de voltar e, desta vez, pediria uns bolos para os miúdos e, mais uma vez, trocava de personagem. Mesmo sem ver, sentia-lhe o estômago revolto ao pegar numa nota amarrotada de dentro da mochila e percebia o quanto teve de engolir para matar a fome às crias. Para o empregado que a atendia, diariamente, não passava duma tarada por doces, jamais descobriria aquele dois em um.
E apelidavam-no de cego.
Reparava no empresário de sucesso. Reparava nele por causa da aflição da gravata. Mal comia, mal respirava, mal vivia, enterrado em preocupações relacionadas com o trabalho. Em casa, a esposa e os filhos de malas aviadas e ele nem percebia. Estava demasiado ocupado: mal comia, mal respirava, mal vivia o que de melhor tinha para viver… até que perdeu tudo.
E o cego era ele?
Surgiam bandos de turistas, ávidos de cliques fotográficos. Fotos em série, para mostrar nas redes sociais. Tão míopes, nem desconfiavam dos restos de gente embutidos na arquitetura paisagística. Nada que não se resolvesse… com um programa sacado da internet, claro. O ceguinho pedinte é que tinha problemas de visão.
Entregue à escuridão, às vezes sentia olhos de criança colados na sua figura velha e gasta – velha como a Sé de Braga e gasta como as pedras da calçada. Só podiam ser de criança. Eram os únicos que tinham liberdade para olhar; reparavam em tudo, sem constrangimento, e, transbordando inocência, puxavam a saia da mãe. E a mãe ordenava:
– Não te aproximes! Ainda apanhas piolhos ou coisa pior.
Se ao menos fosse um cão… um rafeiro, desses que são levados para o canil e podem ser adotados. Sortudos!
E se uma dessas crianças se lembrasse do ceguinho do “Café Vianna” e voltasse atrás para o adotar? Afinal, tinha muito mais para dar, muito mais para além das roupas velhas, das rugas, das brancas, do olhar avariado, dos ossos empenados. Possuía um coração, uma alma, um arquivo com histórias de gente – gente que passa e não vê.
Nem todas as cegueiras eram irreversíveis – achava ele. E esperou. Esperou camuflado… de calçada, calçada suja e gasta, que o tempo esqueceu.
(Suzete Fraga)
Um dos belos contos de Suzete Fraga, presente no seu livro Almas Feridas.

” Almas Feridas é a soma dos mais diversos sentimentos que acabam, inevitavelmente, por nos ferir a alma; moldados pela imaginação, os contos apresentados neste livro caminham de mãos dadas com as nossas fragilidades enquanto seres humanos.
Esta obra mergulha a sangue-frio na sede de vingança e nas relações entre irmãos (bem ao estilo de Caim e Abel), passando pelo dilema da fidelidade no matrimónio. Permite-nos ainda viajar para cenários campestres, recuar no tempo até aos anos 80 do século passado, pregar partidas carnavalescas, espreitar vidas desfeitas pelo álcool e pela violência doméstica, desvendar traições, amores desmedidos, reencontros no Além e narcisismos que levam à loucura, encarar a vida com os olhos de quem não vê, herdar veredictos cruéis, testemunhar actos verdadeiramente altruístas, ler cartas de amor, desfolhar sonhos, sentir a emoção da despedida, conviver com sogras encantadoras, descobrir o dom da humildade ou conhecer videntes muito peculiares.”
O livro pode ser adquirido diretamente com a autora, ou pelo site da editora.

Eis uma das dedicatórias mais carinhosas que já recebi.
A escrita de Suzete é uma delícia de ler – fluída, com conteúdo, emoção e intensidade.
Belíssimos contos!
Foi uma maravilhosa surpresa reler este conto, ainda mais publicado no blogue de uma amiga tão querida e que tanto admiro. Parece-me longínquo o tempo em que escrevi estas linhas… Obrigada, Sandra! Fizeste-me recordar uma fase muito feliz. Sem palavras! Um grande beijinho de gratidão pela tua grandeza de alma.
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Que bom que gostou, minha amiga. Fico muito com a sua presença no blog 😊❤️
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