Acolhimento de água e flor

Manhã quente de um início de verão redencense. O tempo abafadiço apanha o meu ser em um vagaroso sentir. O vento se desloca dos trópicos e se precipita por sobre Redenção em um se pender quieto.

As ruas vomitam as coisas, os carros e sua gente em um mastigar costumeiro. Em um mastigo acintoso. Como se quisesse dizer do que lhe dói o ser em um desavessar de vida.

As longas avenidas/artérias de Redenção se esvaziam de mim pelo avesso do que em mim se externa e se esvazia em um esvaziar contínuo de ruas e de vida.

E nesse esvaziar de vida alguém me diz que o seu José Tenório se foi. Que o seu coração se esvaziou de vida e se preencheu de existência no não-existir da vida.

Tantas coisas suspensas. Quantos sonhos? Desejos? Quereres? Assim é a vida. O coração bate como quer. E quando quer deixa de bater.

Em alguns, é um bater lançado para fora, irascível, agitado, impetuoso, precipitado, arrebatado, vertiginoso. N’outros é um bater para dentro, tardio, moroso, vagaroso, delongado.

No meu peito o coração tem um bater diferente. Desde minha meninice, vêm como um ruflar de asas em preces de voos aos prenúncios do verão. É mais orgânico. É mais tambor de crioula.

O ritmo é puxado por uma parelha de sentimentos. Marcado em cerimônia de batismo pelo meião/afeto, repicado o compasso do existir pelo crivador/amor e rufado pelo grande tambor/ esperança.

Não sabe ser diferente o meu coração. É um bicho faminto. Remexe o solo do existir com a desenvoltura de um tatu no cerrado. Apresenta-se ao devir com o apetite de um tamanduá por sobre um formigueiro.

A fome de meu peito tem olhos de sequidão. É um espichar a mais. Um tamborilhar de arrancar a alma do corpo. Engole, mastiga e regurgita a vida em um vazio de armário ou em preenchimento de adobes.

Desde molecote fui dado a observar o mundo. A olhar entre as frestas das coisas e dos seres a imensidão do universo.

De tanto espiar o espio dos outros no espio que se espiava dos outros em mim, me fiz gente de olhar atento. De olhos arregalados a tudo o que me chegava às mãos, aos olhos ou à alma. Da escuridão da vida e da escuridade do existir.

E foi dado a estas observâncias de mundo, a este olhar capaz de fazer cócegas na alma, por descobrir coisas muitas vezes ocultas, que, em minhas andanças à casa do seu José Tenório percebi nele sentimentos semelhantes.

Um homem acostumado aos des/tratos da vida. Ao uso artesanal do afeto. Aos manejos da solidão. Mas que trazia no rosto, tal qual candeia sobre o velador, a iluminadura do existir-existindo.

O seu José Tenório tinha a cor do crepúsculo. Ir a casa dele, conversar com ele, seus filhos e dona Constância, quase sempre pelo cair da tarde redencense, era a mim uma sensação prazerosa. Um suspiro com cheiro de alecrim florado ao cair da tarde.

Lembro-me da tonalidade de sua voz. O gesticular de suas mãos. O incidir dos seus olhos no esvoaçar do dia. Homem acostumado à pressa do viver sem desassossegar do existir. Homem simples e afeito à ternura.

Quantas vezes sentei junto ao balcão do Comércio Irmãos Tenório em longas conversas. Por inúmeras vezes vi o seu Tenório perambular da cozinha ao balcão. Coluna levemente inclinada. Mãos cruzadas às costas. Olhar atento e crível a tudo o que acontecia na rua.

A ele, o viver tinha significado e significância. Ainda que fosse a minudências, nos rodapés do existir.

Lembro-me que meu pai tinha sentimentos iguais. Pequeno sitiante, lavrador, vaqueiro, trazendo o mundo sobre seus ombros e capaz de gestos e atitudes que me arrancava suspiros, tamanha ternura e mansidão.

Seu José Tenório tinha esta capacidade. Cavava em meu peito um respeito e admiração sem tamanho. Fazia do existir um exercício aprazível e do silêncio uma lição suportável. Eu arregalava os olhos e ouvidos em sua presença.

Das muitas conversas que ouvi em minhas andanças pela casa do seu José Tenório, muitas ainda trago comigo em meu existir de vida. Umas, são iguais as correntes de águas pretas do velho e belo Rio Una, desaguam em minha alma me fortalecendo o sonhar. Outras, me apanhando desavisado, sopram para dentro de mim um ocre-marrom-avermelhado da mata sul pernambucana, matizando o meu ser esperança.

José Tenório foi um território de descoberta. As tantas conversas em que pude presenciar (informais, soltas, aleatórias) eram carregadas de saudade e confiança. Ele trazia em seu peito o linguajar de sua terra natal sem se esquecer da vivência redencense.

Embora suscetível à erosão, devido os desgastes da vida e as intempéries do existir, trazia em su’alma a desembocadura dos manguezais, os gestos edáficos das restingas e o intenso aluviar amazônico.

Trazia em seu ser-ontológico todos os linguajares. Da lontra, do gato maracajá, do xexéu, da juriti, dos gaviões-de-pescoço-branco, dos bacuraus, dos sabiás, dos jacus, dentre outros. Um linguajar abrangente. Um ser-estar-com-o-outro em silêncio ou vozerio. Puxado de bons exemplos.

Reconheço que não tenho presto para estas coisas, para estes saberes, para tantos aprendizados de vida. Nasci quase temporão.

Fui desde menino um fruto arreigado aos entremeios da inflorescência do existir. Mas aprendi a ser teimoso. A insistir. A mirar os olhos nos que as nuvens dizem. A enxergar o que aparentemente não existe. Ou não se mostra. Ou se desvela-ocultando.

Por isto me aprazerava a alma ir à casa do seu José Tenório e sua esposa Constância.

Sempre gostei do silêncio que vem por dentro de outro silêncio trazendo outros tantos silêncios de vida. Que se instaura em minha cabeça feito rodilha sob pesada cabaça. Silenciando apoio e tangenciando estranhamento à própria postura do corpo.

Mas não era o silêncio que me levava à casa de seu José Tenório. Tampouco o fervilhar do antigo entroncamento em seus tempos áureos de lugar a-feitos aos usos e de/usos do existir. Era a busca por ouvi-lo desembaraçando as suas minudências da vida.

Suas memórias corriam a mim feito ribeiro em rigoroso inverno. Apanhava-las por sobre minhas mãos em um acolhimento de água e flor.

Seu José Tenório foi seiva a vivificar os galhos e folhas de seu grande tronco familiar. O via e imaginava: O que serei quando não mais for o que sou? Serei algum aroma? Uma cor? Uma concretude útil para um depois?

Com estas perguntas presas ao peito cresci. O menino se fez homem. Saí por aí. Com o olhar atento a tudo. Inundando-me de vivências de vida e de existir-existindo. Até que, pelos acúmulos dos dias refiz o caminho de volta à Redenção.

Mal sabia que, poucos dias após minha volta o meu peito se encharcaria de saudade. A vida se fez repleta na vida do seu José Tenório.

Foi triste. Despedida sempre me soa tristeza.

Que a vida me permita guardar em meu peito um antemural de saudade. Permita-me tê-lo sempre em lembrança nos entraves do meu existir.

Seu coração, com mais de cem décadas de uma existência em gestos e palavras se aquietou ao lado de sua amada Constância. Em um acolhimento afetuoso ao solo que lhe compôs homem em torno à sua numerosa família.

Água e flor em uma compostura de existência.

OXORONGA, Alufa-Licuta. Alecrim florado no cair da tarde. Leo&Teo -Sociedade Cultural. Redenção.PA. 2017.

Imagem: google

Fonte da imagem: post do autor no Facebook

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