O maior perigo da vida
é se ter um útero de pedra
na hora do rebento nascer.
É se ter um peito fechado
à própria existência de ser,
é se construir de nuvem
na hora do sol aparecer.
O maior perigo da vida
não é morrer antes de ser,
o maior perigo da vida
é só o silêncio saber.
Ainda no útero materno
quis o homem ser pedra;
quis o homem sofrer
os seus nódulos de pedra.
A vivacidade do homem
ao entregar-se à pedra
determinou-o, em vida,
a ter um útero de pedra.
Um sólido útero-mineral
em um rogo peditório.
Um útero sólido e notório
como uma lápide sepulcral
E desde aquele dia
a semente do útero
tem dado um fruto de pedra.
E na frialdade da pedra
este fruto se avilta
mas não deixa de ser pedra.
E quando a porta do útero
se abre para a vida,
o que nasce não é homem:
mas pedra lascada ou polida.
E a vida, instigada,
rasga por dentro seu velcro
de veias, de sangue, de vida
e abre-se por fora em pedra.
E foi assim que nasci:
não como nascem
os filhos de hora primeira.
Eu nasci
como nascem
os filhos de mãe parideira.
Fui lançado pra vida
como folha trepadeira,
fui jogado pra baixo
como rama rasteira,
fui deixado de lado
como vento passageiro.
E assim fui nascido:
não como nascem
os filhos de vida inteira.
Eu nasci
como nascem
os filhos de mãe-poedeira:
trazido para a vida
como um risco de carvão,
tangido para a terra
como um ressequido grão
e às vezes, desmerecido
do acalanto de uma mão.
A minha mãe parideira
cansada de tanto parir
quis uma pedra em seu útero
para nunca mais se partir.
E meu pai, um tanto enfático,
pôs-se a recusar.
E deu à ela, (em sonho fálico)
um nova pedra pra cuidar.
E foi assim que nasci,
não como nascem as pedras
prontas para resistir.
Eu nasci pra ser rasteiro,
pra nunca me levantar,
nasci pra ser derradeiro,
pra nunca longe chegar.
O meu próprio nascer
foi feito para selar.
E quando viu que eu vinha
a sua pétrea-vida cerzir,
a minha mãe parideira
se desabou a sorrir.
Imaginava-se velha
e imprópria para parir,
mas em seu útero de pedra
teve que me gerar, me nutrir.
E foi assim que nasci,
ou melhor: fui sacudido.
Quem nasce como eu nasci
não nasce: é expelido!
E depois que eu nasci
com esta substância de lava,
uma lava de pedra e palavra
veio-me em fúria ferir.
E até hoje não me lembro
se a minha mãe parideira
tenha voltado a sorrir.
Só me lembro do útero-pedra
e da minha ânsia de existir.
De minha pequena e rasa vida
sem peso pra expandir,
se aglutinando na vida
sem força pra resistir.
Das sedimentares paisagens
que ainda crispa o olhar,
lembro-me do despertar pra vida
e o choro do primeiro olhar.
Lembro-me de minha mãe parideira
a embalar-me de mansinho,
uma lasca de pedra franzina
sem a sua força constumeira;
um répobro e sem feitura:
pedra pouco conhecida.
Eis a minha releitura
pra minha leitura de vida.
Eu mesmo não sei dizer
se em toda a minha vida
vi a vida se enternecer.
Eu mesmo não sei dizer
se em toda a minha vida
fiz algo por merecer.
Só sei que do útero-pedra
esta pedra canga nasceu:
pedra-pétrea-pétrea-pedra
pétrea-pedra-pedra-pétrea
Pedra de núcleo maciço
mas de pouquíssimo arremesso,
Pedra que desde o começo
não teve um sonho inteiriço.
Pedra sem sustentação
e de desprezível valor,
pedra-pétrea sem valor
e com víscera de solidão.
Pedra de pouca importância
petrificada em areia,
pedra-pétrea que anseia
por um viver sem ânsia.
Pétrea-pedra sem referência
jogada, largada ao chão.
Pedra que ainda guarda querência
de um humano coração.
OXORONGA, Alufa-Licuta. Útero de pedra.
Editora do Carmo. Brasília-DF.

Bio/Grafia
Alufa-Licuta Oxoronga, inconsútil vivente. Nascido em útero envelhecido. Em tempo de calmaria. Uterinizado por dentro feito magma. Feito avessado moinho. Desde molecote tem parido angústias. Tem gestado grãos em avessamento de moinho. Ainda menino se achou rabiscador de terreiros. De palavras. De desenhos. De sonhos. O palavreado mais parecia brisa ao entardecer. Os desenhos, orvalhos se entregando ao sol. Os sonhos, caminhos brotados de tempo. Mais tarde se descobriu apanhador de silêncio e solidão. De tanto escrever, pintar, sonhar e sentir, pulsou para dentro de si um gosto amargo de ser. De um existir-existindo que mais parecia negros escorpiões nas fendas escuras das paredes de taipa. Mais parecia a mudez de uma madrugada em tempo de intermitente chuva. Desde então tem trilhado o inóspito caminho da esperança. Em espera e andanças. Em agônicos (e diários) sentires. Dos esgarçados verbos e do entrelaço da fala e da escuta tem feito o seu existir.
(Alufa-Licuta Oxoronga)